sábado, 31 de julho de 2010

A casa...[2]



A casa estava impecavelmente limpa, e o sol de Inverno ia beijando os parapeitos das janelas, e iluminando as flores que no jardim iam resistindo ao frio, senti-me em casa, recordei as vezes que ali estive, na altura com a família e eu criança e jovem, nas paredes os quadros iam resistindo aos anos, havia fotos de tantos momentos e eu ia-me deliciando por estar de novo ali, dirigi-me ao quarto e abri de imediato a janela, tantas noites dormidas a ouvir o mar na sua balada incessante, estiquei-me em cima da cama e embalada pelo mar adormeci. Quando acordei era quase noite e o frio fazia-se sentir, fechei a janela e acendi a lareira, aquele sossego inundava-me, não tinha telemóvel, nem televisão ou rádio, nem sequer um relógio, por opção minha, claro! Tinha ido para descansar e para estar comigo própria e era isso que ia acontecer, comi qualquer simples que tinha trazido comigo, e deixei-me ficar vendo o lume estalar, sem pressa, como se a partir de agora eu fosse dona do tempo…estava ali naquela casa meio isolada, poderia acontecer algo, e eu precisar de me comunicar com alguém, é verdade, mas eu estava confiante, nada iria atrapalhar o meu sossego.
Eu entregue a estas meditações, quando oiço bater na porta, uma batida meio tímida, se calhar não estava a ouvir bem, deixei, continuei quieta, mas, bateram, de novo, talvez seja algum pescador que viu luz e me quer cumprimentar, ou terá estranhado haver luz…fui ver quem era, abri a porta e do outro lado alguém sorria, mas não nos conhecíamos pensei, ficámos algum tempo em silêncio, até que tive que o quebrar:
- Desejas alguma coisa?
- Sim…estranhei ver a chaminé a fumegar…está tanto frio.
- Queres aquecer-te?
- Se não se importa…
- Ai, por favor trata-me por tu, entra então.
E eu ia pensando…eu devo estar louca, batem-me à porta, não conheço, mando entrar, não devo estar bem, daqui a pouco sou feita às postas e nem dou conta, mas procurei afastar esses pensamentos, e conduzi-o para a pequenina salinha…
- Anda então aquecer-te, que fazes por aqui? Como te chamas?
- Paulo…e…
E mais um longo silêncio…insisti:
- E…?
- Pois…
- Desembucha…
Eu começava a enervar-me… até que o Paulo respirou fundo e começou
- E tu como te chamas?
- Yara
- Que nome lindo, lembra-me uma guerreira…
- Guerreiros temos que ser todos nós…mas, eu perguntava-te o que fazias por aqui…não respondeste…
- Pois…sabes…eu costumo dormir aqui todas as noites…
- Aqui???? Dentro???
- Não, que ideia…fora…
- Com este frio, estás bem?
- Pois…não é fácil, mas não tenho onde ficar…e duas lágrimas rolaram pelo seu rosto…
Eu fiquei desconcertada, mas não o demonstrei e avancei…
- Ai menino, que ideia essa, não te podes entregar a essa vida, olha para ti, ainda és jovem, podes bem trabalhar, amanhã eu mesma irei falar com os pescadores!
- Não, não faças isso, por favor…
- Então? Queres continuar a viver na rua…
- Tem que ser…
- Claro que não, não digas isso!
- Não te assustes com o que vou dizer…
- Diz! Eu não me assusto com nada, digo eu…
- Por favor não te assustes…eu…sou procurado pela polícia…
- Ai! Meu Deus! Por favor não me digas que mataste alguém…
- Não, nada disso…fiz umas asneiras, mas matar não!
Eu senti-me aliviada, apesar do problema que estava perante mim…e ele continuou…
- Não iria aguentar ser privado da minha liberdade, não sei o que é isso, eu morria se entrasse numa prisão…
- Paulo! Escuta uma coisa, presta atenção e responde em consciência; E vais passar o resto da tua vida a fugir?
- Não sei… já pensei em matar-me…ou fugir para outro país.
- Mas só pensas disparates, pelos vistos…tens falado com alguém?
- Não…com ninguém…
- Pois, eu vi logo, então vais ter esta noite para pensar e ver o que queres da tua vida…se queres vivê-la ou se queres fazer dela um tormento, se erraste e espero que não seja nada grave…se te entregares de livre vontade, apanharás um ou dois anos de prisão…e depois tens os anos todos da vida para a viveres condignamente…
Nem me deixou terminar…
- Yara…não digas mais nada, amanhã vais comigo à polícia, mas tens que me prometer uma coisa…tomas conta de mim…enquanto estiver lá…
Estiquei-lhe a mão…
- Trato feito!
- Obrigado! Conhecemo-nos há instantes, mas parece que já te conheço desde sempre! Obrigado por tudo, agora vou, pois já é tarde, não quero incomodar-te mais, de manhã espero-te lá fora, para irmos então…
- Deixa-te estar onde estás, nem mais um passo! Que comeste hoje?
- Comi uma sandes de manhã, não tenho fome…
- Por favor! Não mintas, vai lavar as mãos, que eu vou ver o que se arranja…cheguei hoje e não tenho muita coisa, mas algo se há-de arranjar!
Eu estava confusa, para todos os efeitos tinha um criminoso em casa, mas era um criminoso diferente…os criminosos são diferentes? Não importa, não ia ser eu a fazer julgamentos, coitado, já estava a sofrer tanto, ia-lhe preparando um copo de leite e umas torradas e entregando-me a estes pensamentos…quando ele me interrompeu…
- Tens medo de mim?
- Medo? Devo ter?
- Não, que ideia…mas qualquer pessoa teria medo…eu sou um criminoso, desculpa ter-te metido nisto…
- Não tens que pedir desculpa, tu estavas a precisar de encontrar alguém que te mostrasse o caminho, e pronto, calhou a ser eu…
- Não…acredito que Ele me ouviu…todas as noites Lhe pedia uma luz e foi essa luz que eu vi quando cheguei à “minha” casa…hoje tenho que agradecer a ti e a Ele…
- Então vamos agradecer-Lhe juntos!
Demos as mãos e rezamos, eu rezava porque o Paulo chorava…
Depois da Oração fez-se silêncio, um longo silêncio, acredito que o Paulo não quisesse ouvir mais nada que não fosse a Voz Dele…por isso permaneci também em silêncio, meditando em tudo o que estava a acontecer…até que o Paulo voltou…
- Agora estou preparado…também quero ser guerreiro como tu!
E rimos!
O Paulo tinha entendido tudo…ia perder alguns anos da sua vida, para depois a ganhar!
- Olha, anda comer agora que já deve ser tarde e uma sandes em todo o dia não é alimento, sabes bem disso!
Ele comeu com vontade, eu ficava observando-o, devia ter a minha idade, ou talvez mais dois ou três anos, os seus olhos agora tinham um novo brilho, senti que ele estava aliviado!
- Yara, obrigado por tudo, tudo mesmo, estava realmente com muita fome, agora vou lá para fora e amanhã de manhã iremos então à polícia, está descansada que eu não fujo, e só não vamos agora porque é muito tarde…
- Sim iremos de manhã, mas hoje vais dormir dentro e não fora da “tua” casa, como tu dizes…
- Não! Eu estou habituado a dormir lá fora, não te preocupes, a sério!
- Toma juízo, tens aí o sofá, dormes no sofá, sempre é melhor que dormir ao relento, e não há mais discussão!
- Dormirei no chão da sala, não é preciso ir para o sofá…
- Eu disse que não há mais discussão, é no sofá e não no chão!
- Pronto, está bem, tu mandas…e mais uma vez obrigado por tudo!
Fechei a porta da sala e dirigiu-me para o meu quarto…Lá fora o mar indiferente a todos estes acontecimentos continuava a entoar a sua balada, e eu sentia-me mais desperta que nunca…tentei adormecer, mas tudo girava na minha cabeça a uma velocidade estonteante, levantei-me…e fui beber água, espreitei a sala iluminada pela lareira e o Paulo dormindo, tranquilo, sem culpas…chorei perante este cenário, chorei perante a coragem do Paulo, e pedi-Lhe que tomasse conta dele.
Voltei para o quarto, tentando adormecer, a manhã não tardava aí e as emoções iam ser muitas…

Yara [1]




Voltava de novo àquele lugar, àquele mar, era Inverno e tudo estava calmo, muito calmo, e o mar majestoso à minha espera. 
Sentei-me na rocha, mas antes que embarcasse para alguma viagem longínqua, fui verificar, e lá estava o meu nome gravado na rocha…. YARA.

Tinham-se passado tantos anos, e eu continuava a fazer parte daquela rocha, porém, hoje já não era a menina apaixonada, a menina que sonhava com o amor…Quando gravei o meu nome na rocha, tinha a certeza que virias ali, àquele lugar, onde tantas vezes conversámos sobre o nosso amor impossível…E, voltaste…Por baixo do meu nome…uma frase – Nunca te esquecerei –.
Mas, hoje ao ver aquela frase o meu coração nem saltou, permaneci serena e serenada, já se tinham passado tantos anos e a Yara dos contos cor de rosa, a Yara sonhadora tinha morrido, e renascido…

Olhava o mar, apaziguada, reflectindo em todos estes anos que se tinham passado…
A doce Yara tinha partido, e transformou-se em alguém que ninguém poderia reconhecer, o sofrimento destrói-nos, mas também nos sublima, depura-nos e faz-nos tomar opções, por vezes radicais, e uma delas foi por de parte o amor, esse amor dos contos de fadas, que viveram felizes para sempre…
Proibi essa palavra na minha vida, tornei-me dura como uma rocha, por vezes até insensível, é verdade, mas tudo isso fez parte de um caminho que trilhei!
E agora estava ali novamente, sozinha, em busca de um pouco de sossego, para passar uns dias de descanso, e era isso que iria fazer.

Já tinha abraçado o meu mar, e coloquei-me a caminho de casa, que ficava apenas a alguns metros...